BEM VINDO! Aviso á tripulação! Aqui inicia-se mais um blog neste oceano tão vasto que é a Blogoesfera.Aqui irão ser trazidos e comentados varios assuntos que acho que sejam de salientar. Sintam-se á vontade para participar ,falem bem ou falem mal mas falem Então apertem os cintos.Vai-se iniciar a viagem. .

08/11/2009

Recordações de Angola

Ja muito se falou da Guerra Colonial, um marco na Historia Nacional que marcou e ainda continua a marcar quem la esteve , muitas familias dos que la ficaram e a sociedade em Geral.
"Só pode haver portugueses vitoriosos ou mortos", exigia o presidente do Conselho em Lisboa, o regime tratava assim os militares de forma Humilhante.Numa Guerra nunca há vencedores,toda a gente perde de uma maneira ou de outra.
Promessas feitas pelo estado Portugues que ficaram por cumprir,má assistencia aos que por la combateram e ás familias,numa Guerra sem razão como diziam os Resistencia.
Nada como os relatos de Ex Combatentes para se perceber ate que ponto foi uma Guerra necessaria ou não.Se fosse na America ja teriam sido feitos muitos filmes com estes testemunhos.


PERFIL

Nome: Manuel Sousa

Comissão: Guiné (1966/68)

Força: Companhia de Caçadores 1587

Lema:'Não morrem todos, porque é que me há-de calhar a mim?'

Actualidade: Hoje, aos 72 anos, nas Caldas da Rainha

Fiz duas comissões, na Guiné e em Angola, alistei-me no exército como voluntário e fui militar até me reformar, na Escola de Sargentos.


A minha história é diferente daquela que é contada pela esmagadora maioria dos que estiveram no Ultramar. Eu alistei-me como voluntário no Exército e passei a vida no meio militar. Ainda hoje, reformado, ajudo nas questões administrativas na Liga dos Combatentes. Eu fui um dos 180 homens que partiram no ‘Niassa’, a 30 de Julho de 1966, com destino à Guiné. Desembarcámos em Bissau a 5 de Agosto e seguimos de imediato numa lancha para Catió e depois para a ilha de Como, que tinha um papel de destaque nos símbolos da luta do PAIGC.

Estivemos seis meses na ilha.A primeira peripécia aconteceu ao fim de quatro meses, com a nossa própria aviação, que nos avistou e pensou sermos o inimigo. Houve uma descoordenação, não conseguimos contactar os nossos camaradas e fomos bombardeados. Tivemos de fugir para o aquartelamento e, por sorte, ninguém ficou ferido.

As coisas não estavam a correr bem. Não tínhamos água potável na ilha. As lanchas da Marinha abasteciam-nos todos os dias, desde Catió, mas quando não havia maré não podiam cumprir a missão. Tínhamos de poupar. Só tomávamos banho e lavávamos a roupa quando chovia. Ao rio não íamos porque tinha crocodilos. Foi ali que se registaram os primeiros feridos da companhia. Tínhamos armadilhado o caminho até aos bidões de gasolina, junto ao rio, e apenas os condutores sabiam lá chegar. Só que um cão accionou as minas, que feriram cinco militares.

Dali fomos para o aquartelamento em Empada, em Março de 1967. Quando regressava de uma operação para o quartel, o furriel Ribeiro foi alvo de uma emboscada e atingido a tiro na medula, ficando paraplégico. Em combate foi o único ferido da companhia. O único morto aconteceu em Bissau, quando estávamos prestes a regressar. Ele vinha do hospital militar e foi atropelado por uma viatura da tropa. Fui eu, por ser o mais antigo do quadro, quem ficou encarregue de trazer o corpo e o seu espólio e de os entregar à família.

O maior susto que apanhei foi em Tite. Numa noite fui ao aquartelamento, em serviço da companhia (eu era comandante de secção), numa avioneta da Força Aérea, de dois lugares, que fazia o reabastecimento e levava o correio. Ia pernoitar no quartel. Tinha tomado banho e tocou o recolher, às 21h30, e o silêncio meia hora depois. Logo a seguir estivemos meia hora debaixo de fogo. Nem arma tinha para ripostar. As tripulações dos Panhard correram para lançar o contra-ataque mas dois dos condutores – um cabo e um soldado – foram atingidos e morreram. A certa altura, o major de operações, Jasmim de Freitas, apanhou um Panhard, saiu do quartel e fez dispersar o inimigo.

Voltámos à Metrópole no paquete ‘Uíje’ a 15 de Maio de 1968. Em 1969, fui mobilizado para Angola. A partida foi a 26 de Novembro no ‘Império’ e chegámos a 6 de Dezembro a Luanda. Estivemos seis dias em Granafil e depois fomos para Mamarrosa, sede do batalhão.

A 22 de Junho de 1970 fomos para Cuimba, para render o Batalhão de Artilharia 2864. Não sofremos emboscadas e a vida correu tranquila. O mesmo não puderam dizer as outras companhias do meu batalhão. Num patrulhamento junto à fronteira com a República do Congo o soldado Anastácio de Jesus Magalhães, da Companhia de Caçadores 2608, accionou uma mina antipessoal e morreu. Outros dois mortos em serviço ocorreram nas restantes companhias – o soldado Adelino António Pereira Magalhães, da 2609, e o 1º cabo Armando da Fonseca e Silva, da 2610. Também as subunidades de reforço registaram baixas – o 1º cabo Herculano Tavares Pontemieiro, do Pelotão de Morteiros 2167, e o sargento Silva Joaquim e o soldado Pedro Camboa, das tropas de elite.

Em Janeiro de 1972 regressei a Luanda, ao quartel-general da Região Militar de Angola, para desempenhar serviços administrativos na 1ª repartição. Os meus camaradas regressaram à Metrópole. Como era do quadro permanente, fiquei em Angola, onde a minha família já estava desde 1970. Quando me encontrava em Cuimba, a minha mulher e os meus dois filhos estavam em São Salvador, a 100 quilómetros. Regressei à Metrópole a 22 de Dezembro de 1974, ao Regimento de Infantaria 5, e fui promovido a primeiro-sargento. Fui formador da Escola de Sargentos do Exército, que sucedeu ao Regimento de Infantaria 5. Por causa da idade, não fui ao curso de promoção a sargento-chefe. Passei à reforma em 1987.

UMA VIDA DEDICADA AO EXÉRCITO

Manuel João Martins Sousa é de São Vicente, Elvas. Fez a 4.ª classe e entre os 11 e os 20 anos trabalhou no campo. De 1957 a 1960 esteve no Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 8, em Elvas, e em 1960 no BCAÇ 9, em Viana do Castelo. Nesse ano fez o Curso de Formação de Sargentos Milicianos, em Tavira.

Em Janeiro de 1961 foi para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Em 1963 casou-se e em 1965 já era furriel. Um ano depois foi para a Guiné (1966/68), logo após nascer o primeiro filho. Esteve ainda em Angola, no BCAÇ 2890, como segundo-sargento (1969/74).


PERFIL

Nome: José Cabedo (coronel)

Comissões: Goa, Moçambique, Angola (1958/1972)

Força: CCAV 568 e 1773, BAT 3836

Lema:Enquanto puder, defenderei com tudo o que estiver ao meu alcance o que os meus homens fizeram e como se comportaram em combate.

Actualidade: Hoje, aos 74 anos, em Lisboa


Cumpri quatro comissões no Ultramar: em Goa, como alferes e tenente, comandante de um pelotão de reconhecimento; em Moçambique, já capitão, no comando da Companhia de Cavalaria 568; em Angola, ainda capitão, comandante da Companhia de Cavalaria 1773; e, por último, já major, como oficial de operações do Batalhão de Cavalaria 3836. Torna-se difícl falar de tudo o que passei durante as minhas comissões. Falarei da ‘minha guerra’, a que vivi com os meus homens. Não falo do que fizeram ou deixaram de fazer as outras unidades.

Esta oportunidade de escrever sobre o que se passou devo aos militares sob o meu comando. Não admito que outros falem por nós.Já que alguém resolveu escrever sobre a companhia que comandei, ainda por cima com mentiras e asneiras, resolvi sair a terreiro – não para salvar a minha honra mas para repor a verdade em defesa dos meus homens.

Escreveu António Guerreiro: "Lembro-me de um homem, de outra companhia, que foi vítima de uma emboscada e cortaram-lhe os tornozelos para lhe roubarem as botas. (...) Recordo-me de que estávamos de segurança e decidíramos jogar à bola para passar o tempo. A determinada altura, alguém chegou e disse: ‘Temos de sair já, parece que há mortos por aí’. Fomos ao acampamento vizinho e, quando lá chegámos, era um quadro de terror. Nesse destacamento, dentro de uma igreja pequenina, lá estavam três corpos tapados com lençóis. Destapei-os. (...) Lá estavam dois alferes e um cabo. Mortos a tiros e mutilados com catanas."

A companhia que eu comandava, a 1773, estava na Fazenda Beira Baixa, enquanto a de António Guerreiro, então furriel, a 1774, estava em Nambuangongo. É certo que dois grupos de combate da minha companhia sofreram uma emboscada, entre a Beira Baixa e Balacende, por um grupo inimigo constituído por uns 50 homens. Também é verdade que os guerrilheiros levaram as botas de um dos militares mortos. Mas é falso que lhe tivessem decepado os pés. Ao destapar os corpos, como diz que fez, podia ter observado isto mesmo. Mas é claro que não viu nada. Resta-me dizer, sobre este episódio, que os meus homens responderam à emboscada com valentia raiando a heroicidade.

Nunca ouvi falar do tal desertor que, segundo António Guerreiro, andaria na zona armado com uma espingarda de sniper a atirar apenas contra os graduados e a quem chamavam o ‘Mata Alferes’. É um disparate. Não usávamos nem galões, nem divisas, nem óculos escuros quando saíamos para combate.

Reposta a verdade, lembro agora um episódio que passei em Moçambique, no comando da Companhia 568, e que muito me marcou.

Tomámos parte em inúmeras operações, planeadas a maior parte delas pelo então tenente-coronel Pires Veloso (hoje major-general na reforma), a quem chamávamos o ‘Embrulha’. E ele sabia que tinha esta alcunha. Era o ‘Embrulha’ porque sempre que aparecia era para nos meter numa embrulhada. A maior que ele nos arranjou foi uma grande operação conjunta com pára-quedistas, comandos e fuzileiros. Esta acção militar foi desencadeada a norte de Metangula. Em dada altura, durante a operação, um ‘pára’ teve a infelicidade de pisar uma mina – e ficou sem um pé. O ferido, que se esvaía em sangue, necessitava de ser evacuado com urgência. Mas não havia helicópteros disponíveis. E ali não existia pista para um avião.

Os meus homens levavam para as operações uma catana no cinturão. Só havia uma solução: abrir uma picada à catanada, por entre a vegetação, para servir de pista. Foi isso que fez o pessoal da Companhia 568 – enquanto os pára-quedistas garantiam a nossa segurança. Ouvimos no céu o barulho de um Dornier 27. Não sabia que aos comandos do aparelho vinha o extraordinário piloto que era o então tenente Carrilho – e ainda bem que era ele. Conseguiu aterrar naquela pista improvisada e curta. Eu nunca tinha visto uma coisa assim: o avião balançava no ar como uma folha de papel a perder altura – até que o trem de aterragem tocou o solo. Embarcámos o ferido. O piloto conseguiu fazer subir o avião, motor na máxima rotação, em tão curto espaço.

Ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos ao recordar este episódio. Não sei se o ‘pára’ sobreviveu. Gostava de saber. Fizemos tudo para o salvar. Ele foi para o hospital, em Vila Cabral, nas mãos de Deus e do piloto Carrilho.

LIVRE DA INVASÃO DE GOA

José Cabedo fez a primeira comissão no Estado Português da Índia como comandante de um pelotão de reconhecimento em Goa. Os homens que o renderam sofreram a invasão pelas tropas indianas. O então governador, general Vassalo e Silva, não tinha alternativa que não fosse a rendição. Era isso ou, como pretendia Salazar, a carnificina inútil de uma guarnição escassa e mal armada. "Só pode haver portugueses vitoriosos ou mortos", exigia o presidente do Conselho em Lisboa. Os nossos militares foram humilhados e tratados como cobardes pelo regime.



PERFIL

Nome: Manuel de Oliveira

Comissão: Angola (1970/72)

Força: Batalhão de Caçadores 2910

Lema:A minha luta era a da cerveja

Actualidade: Hoje, aos 61 anos, em Anadia


“Passei a comissão na guerra da cerveja”
Tranquilidade. Estive quase todo o tempo atrás do arame, em segurança, ao contrário de muitos camaradas que lutaram e alguns morreram lá.


Parti para Angola a bordo do navio ‘Niassa’. Durante a viagem, enjoei muito, não conseguia comer, nem sequer aproximar-me da cozinha. Fui-me abaixo de tal modo que quase não saí da cama. Estivemos uns tempos em Grafanil, em Luanda, e depois partimos para o Norte. Ao contrário de muitos dos meus camaradas, não passei momentos de terror. Nunca disparei um tiro contra ninguém nem saí para o mato. Para dizer a verdade, gostei de estar em Angola e gostava muito de lá voltar. As memórias que guardo são, na maioria, boas. As más recordações, se as tive, já esqueci.

Pertencia à Companhia 2693 do Batalhão de Caçadores 2910 e estive no Toto e em Bembe. Pouco depois de chegar, comecei a sofrer muito com varizes nas pernas. Estive para ser operado e cheguei a ficar um mês internado em Luanda. Quando regressei ao quartel, o médico disse que não podia andar no mato e tinha de ter muito cuidado.

A partir de então fiquei adido à secretaria e tornei-me ajudante do cabo-escriturário Pratas. Passámos bons momentos juntos. Os meus camaradas que saíam para o mato em operações passaram fome, sede, frio e viram muita gente morrer, mas eu nunca passei por isso. Estive dois anos à espera de vir embora, sempre dentro do arame, em grandes jantaradas e brincadeiras. Fazia as sentinelas, quando era necessário, e ia com outros militares fazer os reabastecimentos.

Certo dia, os meus companheiros saíram numa operação e quando regressaram traziam quatro pacaças (bois selvagens) – uma foi para a sanzala, outra entregue à administração e as restantes ficaram para a companhia. Andámos quase um mês a comer daquela carne! Também recordo com saudade os nossos convívios à sexta-feira, em que comíamos sempre uma caixinha de camarão e bebíamos uma grade de cerveja (cada um!). Andávamos sempre em grandes patuscadas. Na nossa companhia havia um sargento alentejano que era bom cozinheiro. Certo dia resolveu fazer uma açorda à moda da terra dele e fez-nos correr aquilo tudo à procura dos ingredientes necessários.

A minha luta era a da cerveja, sobretudo a da Nocal, a minha preferida! Nunca disparei um tiro contra ninguém. A minha arma andava sempre comigo e pronta a disparar, mas a única vez que a usei foi quando um sargento me obrigou. Chamou-me e perguntou: 'Ó Oliveira, não tem arma?' Eu respondi-lhe que tinha e ele perguntou por que não a utilizava. Eu ripostei: 'Para quê? Se não preciso…' Foi aí que ele me explicou que as munições estavam a perder a validade e fez-me disparar todas as balas na parada. Apesar de ter tido uma estadia muito calma, ainda lá apanhei alguns sustos, e não esqueço o dia em que uma companhia mista foi atacada quando estava já a chegar ao quartel. Lembro-me de ver entrar no quartel homens com as costas todas traçadas de balas e muito maltratados. Foi uma aflição!

Sempre que tínhamos que fazer reabastecimentos, percorríamos um caminho arriscado e sujeitávamo-nos a um ataque do inimigo. Certa vez, numa dessas viagens, o rapaz que ia à frente com a metralhadora viu qualquer coisa mexer no capim e, temendo que fosse um ataque, desatou aos tiros. Nós, que íamos nas viaturas logo atrás, saltámos em andamento para nos defendermos. Quando constatámos que eram apenas javalis respirámos de alívio.

Valente susto apanhei também em Mabubas, já na fase final da comissão, quando um camarada se lembrou de lançar uma granada. Eu estava de guarda à barragem e apanhei um dos maiores sustos da minha vida. Pensei que era um ataque. Ficou tudo num alvoroço e eu pensei que aquilo ia terminar mal. Felizmente, não passou de um falso alarme. Marcou-me também o dia em que perdemos um ajudante de cozinha, o Vicente, que morreu electrocutado ao aproximar-se do arame farpado, que estava electrificado para proteger as instalações.

Durante os anos que estive em Angola passei muitos mais bons momentos do que maus. Convivi bastante com os indígenas, sobretudo quando estive no Toto, e fiz grandes amigos por lá. Por vezes também ia a Novo Redondo, onde tinha uma irmã que casou com um funcionário do Governo Civil. Desde que vim da guerra sempre sonhei muito. Sonho que estou em Angola a conviver e na brincadeira com os meus companheiros. Daquela terra trouxe boas recordações e bons amigos, que ainda hoje mantenho, pois todos os anos participo nos encontros de ex-combatentes.

VIVE O SONHO DE REGRESSAR

Regressado em 1972, Manuel de Oliveira tornou-se tipógrafo na Tipografia Anadia, fundada pelo pai e hoje gerida por um irmão. Casou com Cármen Rosa, com quem teve dois filhos, de 24 e 32 anos. Vive em Anadia e divide o seu tempo entre a tipografia, os amigos e a família. Continua a apreciar 'grandes patuscadas e boa cerveja'. Não dispensa os convívios no café com os amigos e perde-se em horas de conversa. Gosta de recordar os tempos do Ultramar com camaradas que revê todos os anos. O seu maior sonho é um dia regressar a Angola, onde garante ter sido feliz.



PERFIL

Nome: Dinis Frade

Comissão: Guiné (1967/69)

Força: Batalhão de Caçadores 1932

Lema: A Guiné é onde o sol é mais quente e o luar é mais turvo

Actualidade: Hoje, aos 61 anos, em Amiais de Baixo

Dor. Ela pediu-me mas nunca contei à namorada do Chico a forma horrível como ele morreu, no dia seguinte a termo-nos visto pela última vez.


A maior mágoa que trouxe da guerra no Ultramar foi a morte do meu melhor amigo, o Chico – de nome completo Francisco Pepino Tomás do Coito. Conhecemo-nos na recruta e, sendo ribatejanos, eu de Amiais de Baixo e ele de Alcanhões, criámos uma grande amizade, como se fôssemos irmãos. Quando embarcámos para a Guiné éramos radiotelegrafistas e pertencíamos ao mesmo batalhão mas fomos colocados em companhias diferentes, a 30 quilómetros de distância. Eu fiquei em Farim, no Norte, e ele em Quntina, na fronteira com o Senegal, onde estavam todos os atiradores. Como pertencíamos às Comunicações, falávamos muito durante a noite, quando estávamos no mesmo turno, ao longo dos oito meses de comissão.

A última vez que o vi foi na véspera da sua morte, quando veio ao meu quartel. O Chico escreveu quatro aerogramas para a família e a namorada, e pediu-me que os metesse no correio, uma vez que o avião chegava no dia seguinte. Dormiu na minha cama enquanto estive de serviço e partiu muito cedo, sem se despedir, pedindo apenas ao estafeta que me desse um abraço por ele.

De manhã, soube pelo rádio que morrera numa emboscada a caminho de Quntina. Pisaram uma mina antipessoal e o Chico morreu numa explosão horrível que lhe deixou o corpo todo desfeito. A sua morte deixou-me devastado e foi muito sentida por todos os que o conheciam. Mesmo assim, deixei os seus aerogramas no correio.

Passadas três semanas, recebi uma carta da namorada do Chico, a Madalena, da Tapada de Almeirim, que nunca conheci mas julgo ser (ou ter sido) juíza no Tribunal de Almada. Pedia-me por favor que lhe contasse a morte do namorado: como foi, se foi rápida ou lenta, se sofreu, se levou um tiro ou se foi atingido de outra maneira. Nunca lhe respondi, porque achei que dizer a verdade seria demasiado cruel. Aliás, nem à minha mãe contei, nas cartas que mandei para casa, que o Chico tinha morrido.

De resto, a guerra foi uma experiência horrível, e eu até costumo dizer que a Guiné é onde o sol é mais quente e o luar é mais turvo. A minha primeira sensação do que era uma guerra, e que me marcou profundamente, vivi-a a 22 de Abril de 1968, quando os turras atacaram o quartel com morteiros. Estava com o estafeta no posto de rádio – sempre o primeiro alvo a abater - e ouvimos um barulho horrível a grande distância. Ele disse-me: 'Amiais, isto é um ataque.' Mas acabámos por ficar, com ele a dizer-me que eu não tivesse medo.

Os rebeldes atacavam o quartel quase sempre ao dia 22 de cada mês. Num desses dias, ao ouvir os primeiros barulhos, corri para a enfermaria e escondi-me junto a uma parede. Ao olhar para cima, qual não foi o meu espanto quando vi o nome do meu pai gravado numa telha: 'Manuel Lourenço Frade'. Não faço a mínima ideia de como é que as telhas feitas na cerâmica dele, em Amiais de Baixo, foram parar à Guiné. E se calhar até tinham passado pelas minhas mãos quando lá trabalhava. Tive o pressentimento de que não ia morrer ali, como se o meu pai me estivesse a proteger.

Fui umas 20 vezes para o mato, o pior que nos podia acontecer. Numa ocasião, em Outubro de 1968, era o único branco no meio de 60 ou 70 ‘roncos’, guerrilheiros negros que estavam na sua terra mas ao serviço de Portugal. Como eles não tinham transmissões, tive de caminhar com um rádio de 16 quilos às costas durante dois dias e duas noites. Urinei para uma queimada para me poder mascarrar de preto e não ser um alvo fácil no meio deles. A missão era chefiada pelo comandante Chern, que me colocou um binóculo Bricama na cara para que eu visse um quartel de terroristas que tinha a fama de ser quase tão forte como o nosso. Eu disse-lhe para ter cuidado para ver para onde me levava, porque eu tinha mulher e dois filhos para criar na Metrópole. Era mentira, porque eu era solteiro e bom rapaz, mas funcionou e voltámos para trás. A guerra e a matança eram a coisa mais normal do Mundo para eles. Mas para mim não.

O dia mais feliz da minha vida foi quando regressei à Metrópole. Vivi situações muito complicadas mas sei que muitos portugueses sofreram bem mais do que eu, que só não fui mais sacrificado por ser radiotelegrafista. Nos momentos de acalmia, fugia à realidade escrevendo cartas à minha mãe. Aliás, quero deixar aqui um grande bem-hajam a todas as mães que tiveram filhos no Ultramar, mesmo às que já partiram, como a minha.

ENTRE NAMORADAS E NETOS

Depois de regressar em 1969 da Guiné, onde esteve na Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Caçadores 1932, Dinis Frade trabalhou como motorista de pesados durante 29 anos. Neste momento está em situação de pré-reforma, depois de ter ficado viúvo há seis meses. Tem dois filhos e uma filha, todos casados. O ex-combatente não perde um encontro do seu batalhão, porque ficou 'marcado pela união e amizade que se criou'. 'Na tropa falávamos de namoradas. Agora falamos dos netos', diz Dinis Frade, comparando as voltas que a vida dá.

2 comentários:

  1. Estimados camaradas do batalhao de caçadores 770 de angola e da companhia 765 que esteve em Ambris e Cambamba dos anos 65/67. Gostaria de encontrar alguns dos compahneiros, eu sou Carlos Dias, ex; cabo enfermeiro ; um grande abraço para todos

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  2. O que hei-de comentar?
    Cada um conta a guerra como quer, uns com verdade, outros com a verdade deles.Furriel Miliciano,estive em Angola de 1969 a 71 sempre no mesmo local ( VISTA ALEGRE) no coração dos DEMBOS, e acho que está quase tudo dito, momentos dificeis e também alguns bons, cada um encarou a Guerra de maneiras diferentes, uns estavam na guerra, outros passaram pela guerra.

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